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Letícia Lima LeãoI; Marcos José Burle de AguiarII
IMestre, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG. Especialista em Genética Médica e Pediatria. Membro, Serviço de Genética, Hospital das Clínicas, UFMG, Belo Horizonte, MG
IIDoutor, UFMG, Belo Horizonte, MG. Especialista em Genética Médica e Pediatria. Professor associado, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG, Belo Horizonte, MG. Vice-diretor, Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD), Faculdade de Medicina, UFMG, Belo Horizonte, MG

Introdução

A triagem neonatal foi proposta pelo Dr. Robert Guthrie em 19631. O método proposto, e depois amplamente utilizado em todo o mundo, foi um ensaio de inibição bacteriana realizado em amostras de sangue seco, colhidas em papel-filtro, para detecção das concentrações de fenilalanina. O tratamento da fenilcetonúria baseado na restrição de fenilalanina na dieta já era conhecido 1 década antes, mas se realizado após início dos sintomas da doença, não revertia os danos neurológicos. Guthrie tinha como objetivo identificar indivíduos com fenilcetonúria em fase pré-sintomática para realizar o tratamento mais precocemente.

Posteriormente, várias outras doenças metabólicas, endócrinas, hematológicas e infecciosas foram acrescentadas ao painel de triagem. As doenças mais triadas em todo o mundo são: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias, fibrose cística, galactosemia, deficiência de biotinidase, hiperplasia adrenal congênita, doença do xarope de bordo, deficiência de desidrogenase acil-coenzima A de cadeia média (MCAD) e tirosinemia2.

As doenças triadas em cada país, ou mesmo nas diversas regiões ou estados de um mesmo país, variam muito, dependendo de decisões de políticas de saúde baseadas em aspectos epidemiológicos, étnicos, sociais, econômicos e éticos. O pediatra pode informar-se sobre o painel de doenças triadas nas várias partes do mundo através do site da Sociedade Internacional de Triagem Neonatal (International Society for Neonatal Screening – ISNS): http://www.isns-neoscreening.org/. Neste site, são encontradas informações úteis, protocolos e recomendações sobre a triagem neonatal e links para diversas sociedades de triagem neonatal do mundo3.

Uma grande mudança ocorreu nos anos 1990, quando se iniciou o uso da espectrometria de massa em tandem (MS/MS) para análise quantitativa de aminoácidos e acilcarnitinas em papel-filtro. Por esse método, são hoje diagnosticadas doenças do metabolismo dos aminoácidos, da oxidação de ácidos graxos e acidemias orgânicas. É possível realizar a triagem para mais de 40 doenças metabólicas em uma única amostra de sangue, em aproximadamente 2 minutos2,4-9.

Hoje, a triagem neonatal é a iniciativa de saúde pública e de pediatria preventiva, ligada à genética, mais conhecida e utilizada em todo o mundo10-12. Também no Brasil, trata-se da maior iniciativa do Sistema Único de Saúde (SUS) na área de genética. Embora o pediatra e o médico de família tenham um papel proeminente para o seu sucesso, a participação de ambas as especialidades nos programas existentes em todo o mundo ainda é pequena2,12-15. Neste trabalho, fizemos uma revisão e atualização da literatura sobre os aspectos mais importantes da triagem neonatal para o pediatra, com o objetivo de formar uma opinião crítica sobre a mesma, ampliar a sua participação no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), do Ministério da Saúde, e intervenção nos testes de triagem privados existentes no país.

Conceito de triagem neonatal

Triagem significa separação, escolha. Os testes de triagem neonatal não são diagnósticos. Eles separam a população de recém-nascidos em dois grupos: um constituído por aqueles que podem ter uma doença, outro por aqueles que não devem tê-la6. Para que se realize a triagem neonatal, é necessário, portanto, que exista um teste adequado com alta sensibilidade (capacidade de identificar corretamente aqueles que têm a doença, ou seja, sem ou com pouquíssimos falso-negativos) e razoável especificidade (capacidade de identificar corretamente aqueles que não têm a doença, ou seja, com poucos falso-positivos)11,16.

Critérios para programas de triagem neonatal

Os critérios habitualmente usados para programas de triagem, em geral, seguem aqueles propostos por James Wilson e Gunnar Jungner em 1968, em documento publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). São eles: a condição a ser triada deve ser um importante problema de saúde; a história natural da doença deve ser bem conhecida; deve existir um estágio precoce identificável; o tratamento em estágio precoce deve trazer benefícios maiores do que em estágios posteriores; um teste adequado deve ser desenvolvido para o estágio precoce; o teste deve ser aceitável pela população; intervalos para repetição do teste devem ser determinados; a provisão dos serviços de saúde deve ser adequada para a carga extra de trabalho clínico resultante da triagem; os riscos, tanto físicos quanto psicológicos, devem ser menores do que os benefícios17.

A triagem neonatal nem sempre consegue seguir todos esses critérios, uma vez que o grupo de doenças é muito heterogêneo e estudos controlados randomizados são difíceis de executar, por serem algumas delas muito raras5,18.

Características da triagem neonatal

A triagem neonatal não é a simples realização de testes para identificar concentrações de substâncias no sangue. É mais, também, que um sistema público que assegure que cada resultado esteja ligado a um determinado recém-nascido, o qual, subseqüentemente, receberá um teste diagnóstico e, se indicado, será encaminhado para o tratamento adequado. Triagem neonatal é um sistema de cinco etapas, habitualmente organizado e conduzido pelo sistema público de saúde, que tem as condições e a autoridade necessárias à execução da triagem universal e no qual o pediatra desempenha um papel importante2,13,14,17,19-21.

A primeira etapa compreende o teste de triagem propriamente dito. O objetivo é a triagem universal, ou seja, que todos os recém-nascidos sejam triados. As atuações do obstetra e do pediatra são fundamentais nesta fase. Os pais precisam saber da existência da triagem neonatal e ser orientados previamente sobre: os benefícios da detecção precoce das doenças a serem triadas e quais são elas; os riscos existentes para o recém-nascido que não é submetido ao teste; a idade adequada para sua realização; a necessidade de exames confirmatórios posteriores para os que forem positivos; a possibilidade de falso-positivos; o processo de acompanhamento e recebimento dos resultados2,21.

O pediatra deve estar atento aos fatores que podem influenciar os resultados, como idade inadequada para coleta (recomenda-se entre 3 e 7 dias de vida no Brasil), prematuridade, dieta, transfusões e nutrição parenteral total2.

A segunda etapa, no Brasil denominada de busca ativa, é o acompanhamento do resultado e localização do recém-nascido e sua família, principalmente se o resultado for alterado, já que o tempo para início do tratamento é crucial para que a mortalidade, morbidade e seqüelas sejam prevenidas. Os resultados anormais devem ser comunicados, o mais rápido possível, para que os testes diagnósticos sejam realizados. O pediatra deve dar suporte à família com informações sobre o significado do resultado positivo da triagem, a possibilidade de falso-positivos e o encaminhamento dos exames confirmatórios22,23. A primeira conduta do pediatra ao receber um resultado alterado da triagem é confirmar se a criança está bem e assintomática. Uma criança que não está bem deve ser avaliada urgentemente, ou pode mesmo necessitar de internação para terapia de suporte, ou específica24.

Também é necessário estar atento para a comunicação dos resultados negativos. Não se deve adotar a política de que a ausência de notícia significa boa notícia20. A realização da triagem cria expectativa na família e ela tem o direito de saber o resultado o mais rapidamente possível.

A terceira etapa é a realização dos testes diagnósticos, que variam de acordo com a doença e que, freqüentemente, requerem laboratórios especializados. Nesta etapa, diferenciam-se os resultados positivos dos falso-positivos20. O pediatra necessitará receber orientações dos centros de referência das doenças e, muitas vezes, encaminhá-las para tratamento em longo prazo.

A quarta etapa diz respeito ao tratamento, que muitas vezes é por toda a vida. O acompanhamento por equipes multidisciplinares é necessário em grande parte das doenças, em conjunto com o atendimento regular feito pelo pediatra de referência, que tem maiores oportunidades de contato com a família e o paciente. Para tal, o pediatra precisará manter-se informado sobre os aspectos fisiopatológicos, clínicos e psicossociais relativos à doença. O aconselhamento genético é também constituinte desta etapa, incluindo detecção dos portadores na família, risco de recorrência para outros filhos do casal e possibilidade de diagnóstico pré-natal em futuras gestações2,21,25.

A quinta etapa é a avaliação periódica de todas as etapas e componentes do sistema: validação dos testes utilizados, verificação da eficiência da busca ativa e intervenção, verificação do benefício para o paciente, a família e a sociedade. É a etapa referente à avaliação crítica do sistema, que deve ser constante. Nesta etapa, verificam-se a cobertura populacional, os tempos consumidos em cada etapa, detectando obstáculos à realização precoce do diagnóstico e tratamento. Verificam-se a eficácia do tratamento e as dificuldades encontradas para sua efetivação e manutenção. Verifica-se o impacto dos diagnósticos sobre as famílias. Verificam-se os efeitos da triagem na população2,21,25.

O American College of Medical Genetics (ACMG) recomenda uma sexta etapa: a educação dos profissionais e do público2,26.

Estas características demonstram que a triagem neonatal é mais do que realizar testes laboratoriais. É um sistema complexo, e para o seu êxito é imprescindível a participação do sistema de saúde.

Consentimento livre e esclarecido

Com a introdução de testes de DNA na triagem neonatal, consumidores, profissionais de saúde e formuladores de políticas de saúde começaram a propor a introdução do termo de consentimento livre e esclarecido tanto para a realização dos testes de triagem como para o destino da amostra coletada. Não existe um consenso, mas os especialistas reconhecem os benefícios do termo de conhecimento livre e esclarecido antes do teste como um instrumento para a educação dos pais2,27. Com a capacidade de extrair DNA do papel-filtro e realizar testes de DNA, é necessário que os pais saibam a destinação do material colhido de seu filho.

Benefícios e riscos da triagem neonatal

A triagem neonatal apresenta benefícios e riscos. Entre os benefícios está a detecção de doenças graves e tratáveis antes do aparecimento dos sintomas, prevenindo problemas como retardo mental, ou mesmo o óbito. Outro benefício é a identificação dos portadores de algumas doenças, possibilitando o aconselhamento genético e a reprodução consciente.

Os riscos mais considerados são: deixar de identificar alguns (poucos) recém-nascidos afetados (falso-negativos), causar ansiedade aos genitores nos casos falso-positivos, detectar alguns casos de falsa paternidade, detectar doenças para as quais o tratamento não é efetivo.

É necessário ter em conta que, para algumas doenças, existem variantes que só se manifestam mais tardiamente na vida e levam a diagnósticos falso-negativos.

Triagem por espectrometria de massa em tandem

A MS/MS é um sistema em que dois espectrômetros de massa são colocados em seqüência e separados por uma câmara de colisão. O sangue coletado em papel-filtro é eluído e ionizado por eletrospray. Os íons são separados por carga no primeiro espectrômetro, selecionados por um programa de computador e passam para a câmara de colisão, onde são fragmentados. Os fragmentos passam para o segundo espectrômetro, onde são analisados e identificados de acordo com a sua massa4,8,19,24.

Todo o processo de análise leva cerca de 2 minutos e, ao final, mais de 40 doenças metabólicas podem ser identificadas, a partir de uma única amostra8, dentre elas aminoacidopatias, defeitos de oxidação de ácidos graxos e acidemias orgânicas. Isso possibilita diagnóstico precoce e tratamento pré-sintomático de muitas doenças metabólicas. No entanto, existem dúvidas sobre a eficácia do tratamento de algumas doenças, a história natural de outras, relação custo-benefício e ética17,28.

Da mesma forma que outros programas de triagem neonatal, a triagem expandida usando MS/MS não foi estabelecida a partir de estudos controlados que documentassem sua eficácia, mas em função de que a evolução das doenças metabólicas, sem diagnóstico precoce, é uniformemente ruim. Além disso, a tecnologia tornou-se disponível e economicamente viável, facilitando sua aplicação7,24.

A detecção de doenças raras e pouco familiares para o pediatra, a necessidade de acompanhamento imediato, logística complicada, agilidade para realizar exames confirmatórios, tratamento especializado e a necessidade de evitar ansiedade familiar demandam desenvolver uma rede bem organizada, ligando o sistema de triagem a um serviço de doenças metabólicas adequadamente estruturado29.

Existe hoje grande controvérsia sobre quantas e quais doenças devam ser triadas por esse método. Alguns autores defendem a realização do maior número possível de diagnósticos, considerando que, para o pediatra, a essência da especialidade é a realização da medicina preventiva e que, mesmo nas doenças em que não há tratamento, é importante para a família saber o diagnóstico e receber aconselhamento genético adequado4,30,31. Outros autores consideram que não há informações suficientes sobre a eficácia das triagens ampliadas e que faltam pesquisas bem conduzidas sobre o tratamento das doenças. Questionam a estratégia de oferecer resultados sobre um grande número de doenças para as quais há pouca ou nenhuma evidência de benefícios para os afetados32,33.

Alguns aspectos desfavoráveis considerados são o nível de estresse desencadeado nas famílias das crianças com resultados falso-positivos34 e aumento dos custos de longo prazo, sem que se saiba, até o momento, se compensam os benefícios.

Algumas das causas de falso-positivos na triagem por MS/MS são a prematuridade, suplementação dietética com triglicérides de cadeia média ou carnitina35,29, além de variações fisiológicas nos níveis dos analitos, nutrição parenteral e uso de antibióticos que contenham ácido piválico, o que pode sugerir acidemia isovalérica19,36. Tirosina freqüentemente está elevada em prematuros e mesmo em crianças a termo, sem que ocorra defeito no metabolismo desse aminoácido. A deficiência materna de vitamina B12 altera o perfil de acilcarnitinas do recém-nascido, sugerindo acidemia propiônica. As alterações desaparecem com a reposição da vitamina24.

Falso-negativos podem ocorrer dependendo da idade em que a amostra foi colhida, porque os analitos apresentam diferenças no perfil pós-natal37. Níveis normais no período neonatal podem ocorrer, por exemplo, na homocistinúria. O diagnóstico da acidemia glutárica tipo I torna-se difícil, porque os metabólitos de interesse para análise podem permanecer normais quando os afetados estão fora da crise aguda24.

Uma doença que tem sido considerada adequada para triagem por praticamente todos os países que têm acesso à tecnologia MS/MS é a MCAD, pelo seu potencial de letalidade, pela alta freqüência na população e pelo tratamento simples e seguro após o diagnóstico17,30. Entretanto, sabe-se hoje que muitos casos diagnosticados de MCAD são leves e que, mesmo sem diagnóstico, não evoluiriam para descompensação18. Algumas doenças que não são facilmente identificáveis na triagem por MS/MS são: doenças de depósito lisossomal (por exemplo: mucopolissacaridose), as porfirias, doenças do metabolismo de carboidratos (por exemplo: frutosemia), acidemias láticas congênitas, doenças peroxissomais e a maior parte dos defeitos da fosforilação oxidativa. Doenças do ciclo da uréia que não levem ao aumento de citrulina não são detectadas24.

Introdução dos exames por espectrometria de massa em tandem nos programas de triagem

A resposta à realização da triagem neonatal por MS/MS foi diferente nos EUA, na Europa e em alguns países de outros continentes.

Nos EUA, o ACMG17,26,38 formou um grupo multidisciplinar (Newborn Screening Expert Group) que revisou toda a estrutura da triagem neonatal nos diversos estados e definiu um painel de 29 doenças para a triagem neonatal. Foram listadas nove doenças do metabolismo dos ácidos orgânicos, cinco do metabolismo dos ácidos graxos, seis do metabolismo dos aminoácidos, triadas por MS/MS, além da doença falciforme e duas outras doenças hematológicas, hipotireoidismo congênito, galactosemia, hiperplasia adrenal congênita, fibrose cística, deficiência de biotinidase e surdez, triadas por outros métodos39.

Ao analisar a triagem neonatal nos EUA, aquele grupo fez outras considerações muito importantes. Entre elas, estabeleceu os seguintes princípios:

1 – A triagem deve ser universal e de responsabilidade pública.

2 – Deve ser voltada principalmente para os afetados e, secundariamente, para os demais recém-nascidos, suas famílias, profissionais de saúde e o público em geral.

3 – Triagem neonatal não se resume a testes. É um sistema coordenado e inclusivo que consiste em educação, triagem, busca ativa, diagnóstico, tratamento, seguimento e avaliação periódica do programa.

4 – Médicos e demais componentes públicos e privados do programa devem estar em estreita comunicação para garantir os testes confirmatórios, o seguimento apropriado e cuidados dos recém-nascidos identificados.

5 – As doenças recomendadas devem estar baseadas em evidências científicas e nas opiniões dos especialistas.

6 – Para ser incluída na triagem, uma doença deve preencher os seguintes critérios mínimos: ser identificada em uma fase na qual não pode ser detectada clinicamente, existir um teste com sensibilidade e especificidade adequadas, existir benefícios na detecção precoce, intervenção oportuna e tratamento eficaz.

7 – Os dados de saúde devem ser centralizados para o acompanhamento longitudinal das doenças específicas do programa.

8 – O programa necessita ter uma política para garantir a guarda confidencial e o uso apropriado dos espécimes coletados.

9 – O conhecimento público, o treinamento profissional e a educação das famílias são de responsabilidade do programa26.

Na Europa, essa implantação vem sendo mais lenta. Em janeiro de 2007, sete países tinham expandido a sua triagem, sendo que a maioria deles a iniciou após 2004. Em alguns destes países, a triagem por MS/MS não abrangia todo o território. O número de doenças triadas por MS/MS era bem menor e variava de duas (fenilcetonúria e MCAD), na Grã-Bretanha e Suíça, até 20, na Áustria40. Essas diferenças em relação aos EUA devem-se a diferentes estimativas de riscos e benefícios.

Dois países europeus merecem consideração especial, Alemanha e Grã-Bretanha. Na Alemanha, a triagem ampliada começou em 1999 com uma abordagem irrestrita. Em 2002, as autoridades de saúde decidiram limitar o número de doenças metabólicas detectadas por MS/MS a 10 e que resultados alterados para outras doenças, obtidos acidentalmente, seriam ignorados e não comunicados5. Além disso, todas as amostras são descartadas 3 meses após a coleta.

Na Austrália e no Japão, realiza-se a triagem ampliada sem restrições.

Na Grã-Bretanha, foram criados dois grupos de avaliação tecnológica que chegaram a conclusões díspares: um grupo encontrou fortes razões para introduzir a triagem por MS/MS para um grande número de doenças, enquanto projeto piloto41; o outro recomendou um estudo piloto para triagem apenas de MCAD e acidúria glutárica tipo 2, além de fenilcetonúria42, e se posicionou contra a inclusão das demais doenças.

Conhecimento médico sobre a triagem ampliada por espectrometria de massa em tandem

Após a introdução da triagem ampliada por MS/MS nos EUA, foram realizadas diversas pesquisas entre pediatras e médicos de família para avaliar o seu papel. Estes trabalhos identificaram que, embora aqueles especialistas demonstrassem interesse e vários estivessem envolvidos na triagem ampliada, o seu conhecimento sobre as doenças era pequeno e não estavam preparados para o seguimento das crianças que apresentassem triagem positiva13,14,22,23. O Newborn Screening Expert Group verificou um claro descompasso entre a informação disponível e a informação necessária ao médico de primeiros cuidados (pediatras e médicos de família) para facilitar uma resposta imediata a um teste de triagem positivo e recomendou que o treinamento profissional fosse de responsabilidade do sistema de triagem. Elaborou ainda uma lista de ações (ACT sheets) a serem desenvolvidas diante do diagnóstico de cada doença proposta24,43, que está disponível no site da National Newborn Screening and Genetics Resource Center: http://genes-r-us.uthscsa.edu/.

Triagem neonatal no Brasil

As primeiras experiências de triagem neonatal começaram no Brasil na década de 1960, tendo sido o pediatra Prof. Benjamim Schmidt o seu introdutor44. A Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo, sob sua direção, iniciou a triagem neonatal para fenilcetonúria em 1976 e, em 1980, foi adicionada a triagem para o hipotireoidismo congênito15,45.

Posteriormente, vários outros laboratórios privados, localizados principalmente nas Regiões Sudeste e Sul, disponibilizaram exames para triagem neonatal de diversas doenças44,45.

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990) definiu a triagem neonatal como obrigatória. Em 1992, através da portaria 22, o Ministério da Saúde reafirmou a obrigatoriedade da triagem neonatal e incluiu a avaliação para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito. Estes procedimentos foram, então, acrescentados à tabela do SUS para serem cobrados por qualquer laboratório, o que deu maior ímpeto à realização dos testes de triagem neonatal nos diversos estados e ao surgimento dos primeiros programas com cobertura estadual44,45.

Em 2001, foi criado o PNTN através da Portaria 822, de 6 de junho, do Ministério da Saúde15,44,45. Este programa amplia a triagem neonatal no Brasil para quatro doenças (fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e fibrose cística) e objetiva atingir 100% de cobertura dos recém-nascidos vivos. Trata-se de um programa público, coordenado pelo Ministério da Saúde, embora conte com laboratórios e outras instituições privadas em sua estrutura. Define o processo de triagem neonatal em cinco etapas, de forma semelhante ao preconizado pelo ACMG (2005), ou seja, teste laboratorial, busca ativa dos casos suspeitos, confirmação diagnóstica, tratamento e seguimento por equipe multidisciplinar. Foi elaborado um protocolo com normas claras que orientam o programa de triagem em todas as suas fases. O controle é estabelecido por relatórios mensais que cada serviço de referência deve enviar ao Ministério da Saúde.

A implantação do programa deve ocorrer em três fases, de acordo com o nível de organização e de cobertura de cada estado. Na fase I, as doenças triadas são a fenilcetonúria e o hipotireoidismo congênito. Na fase II, é adicionada ao painel da fase I a triagem para anemia falciforme e outras hemoglobinopatias. Na fase III, acrescenta-se ao painel de doenças a triagem para fibrose cística44.

Em maio de 2006, todos os estados brasileiros já haviam implantado a triagem neonatal para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito, todos funcionando de acordo com os protocolos do PNTN. Dez estados estavam na fase II e três na fase III. A cobertura para hipotireoidismo congênito e fenilcetonúria era de aproximadamente 80%, o que corresponde a 2.497.291 recém-nascidos/ano44. No entanto, alguns estados já tinham cobertura acima de 95% para as quatro doenças46,47.

Quando comparada com a triagem nos EUA, pode parecer que o painel de doenças triadas pelo PNTN é acanhado. No entanto, ele é exatamente o mesmo painel oferecido na Grã-Bretanha, pois apenas a partir de abril de 2009 será oferecida a triagem para MCAD a 100% da população daqueles países48.

Doenças do Programa Nacional de Triagem Neonatal

Fenilcetonúria. É um erro inato do metabolismo, de etiologia autossômica recessiva, resultante da ausência ou deficiência quase completa de atividade da enzima fenilalanina hidroxilase, que leva ao aumento da concentração de fenilalanina plasmática e aumento da excreção urinária de ácido fenilpirúvico. O nível de fenilalanina no sangue é superior a 10 mg/dL ou 600 μmol/L. De acordo com os níveis de fenilalanina, classificam-se como fenilcetonúria leve os casos que se situam entre 10 (600 μmol/L) e 20 mg/dL (1.200 μmol/L), e como fenilcetonúria clássica os casos com níveis acima de 20 mg/dL (1.200 μmol/L). Valores entre 4 mg/dL (240 µmol/L) e 10 mg (600 µmol/L) são encontrados nas hiperfenilalaninemias transitória ou permanente, dependendo da evolução, e não necessitam tratamento dietético. É necessário, no entanto, ter atenção com o aumento de fenilalanina em indivíduos do sexo feminino, pois a hiperfenilalaninemia permanente, tanto quanto a fenilcetonúria, pode causar nos filhos o quadro reconhecido como fenilcetonúria materna (microcefalia, retardo mental e cardiopatia congênita). É necessário também o diagnóstico diferencial com a deficiência de BH4, uma coenzima da fenilalanina hidroxilase2,15,45. A incidência da fenilcetonúria varia nos diversos estados e regiões, de 1:21.000 a 1:13.500 nascidos vivos. Os afetados, se não tratados precocemente, freqüentemente desenvolvem retardo mental e distúrbios do comportamento. O tratamento consiste na restrição de fenilalanina da dieta com monitorização dos níveis de fenilalanina séricos15.

Hipotireoidismo congênito. É a deficiência do hormônio tireoidiano ao nascimento e representa uma das principais causas tratáveis de retardo mental, com incidência de 1:4.000 a 1:3.000 nascidos vivos. É determinado, em geral, por alguma forma de disgenesia tireoidiana, sendo que 85% dos casos são esporádicos, existindo diversas etiologias. A triagem é feita com dosagens do hormônio tireóide-estimulante (TSH) e da tiroxina livre. O tratamento é a reposição oral de levotiroxina, com monitorização clínica do desenvolvimento e do crescimento, e dos níveis sangüíneos dos hormônios. Em pequeno percentual de casos, o hipotireoidismo congênito pode se dever a defeitos na síntese hormonal, de natureza autossômica recessiva15,45.

Doença falciforme. É um grupo de doenças caracterizadas pela produção anormal de cadeias β da hemoglobina, o que determina anemia por hemólise crônica, além de episódios intermitentes de oclusão vascular, acompanhados de dor intensa e outras complicações. A incidência é de 1:2.500 a 1:1.000 nascidos vivos, e a etiologia é autossômica recessiva. A triagem neonatal pode identificar indivíduos com outras hemoglobinopatias e também portadores. Profilaxia de infecções, imunizações, educação da família para identificação e procura de tratamento rápido para as principais complicações reduzem a morbidade e a mortalidade15,45.

Fibrose cística. É um distúrbio da função exócrina associado à proteína reguladora da condutância transmembrana (CFTR) que regula o fluxo de íons em superfícies epiteliais. As principais alterações ocorrem no pâncreas exócrino, pulmões, intestino, fígado, glândulas sudoríparas e trato genital masculino. Ocorrem repercussões graves na nutrição e no crescimento, e muitos acometidos morrem devido às alterações pulmonares. A incidência varia de acordo com a etnia, sendo mais comum em caucasianos nos quais ocorre em cerca de 1:3.500 nascidos vivos. No Brasil, a sua incidência situa-se em torno de 1:10.000 nascidos vivos47. A etiologia é autossômica recessiva.

A triagem é feita com a dosagem da tripsina imunorreativa (IRT), e a confirmação do diagnóstico, por meio do teste do suor (Ministério da Saúde). No Brasil, a prevalência da mutação delta F 508 é bem menor que nos EUA e Europa, e o perfil de mutações mais freqüentes é diferente, dificultando a utilização de um painel de mutações.

O tratamento requer suporte nutricional, suplementação de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K), reposição de enzimas pancreáticas, broncodilatadores, fisioterapia respiratória e prevenção de infecções pulmonares. O diagnóstico precoce diminui a morbidade, e alguns estudos indicam aumento da sobrevida15,47,49-52.

Um problema na triagem neonatal da fibrose cística são os falso-positivos, que criam a expectativa de uma doença grave e são numerosos quando se usa as dosagens de IRT. Os falso-negativos estão associados ao íleo meconial e à coleta tardia, pois os níveis de IRT diminuem após a terceira semana (Tabela 1)45.

Outros testes de triagem no Brasil

Laboratórios privados realizam testes diagnósticos para outras doenças passíveis de triagem neonatal, mas ainda não incluídas no PNTN. Estes laboratórios não têm como objetivo a triagem universal nem participam de um programa de triagem com as cinco etapas características da triagem neonatal, mas oferecem os testes de triagem e as orientações iniciais para o diagnóstico e tratamento. Como são oferecidos em muitas maternidades privadas, é necessário que o pediatra se informe sobre os mesmos e as doenças para as quais são voltados.

A deficiência de biotinidase é uma doença autossômica recessiva que afeta a reciclagem da biotina. A biotina é uma vitamina hidrossolúvel do complexo B que age como co-fator para enzimas do complexo carboxilase. A doença pode se manifestar com poucas semanas de vida até 10 anos de idade. A deficiência secundária da biotina leva a alterações neurológicas, distúrbios dermatológicos, perda auditiva e atrofia óptica e, mais tardiamente, pode levar ao retardo mental45,54,55. Embora a incidência nos EUA seja de aproximadamente 1:126.000 a 1:62.000, o tratamento é simples e barato, por reposição oral da biotina.

No Paraná, já está sendo oferecida a triagem para a deficiência de biotinidase dentro do Programa de Triagem Neonatal vinculado ao PNTN e, em Minas Gerais, no Programa Estadual de Triagem Neonatal está em andamento um projeto piloto com esta doença (experiência pessoal).

A hiperplasia adrenal congênita é um conjunto de defeitos enzimáticos de causa genética que interfere na biossíntese de cortisol e, freqüentemente, de aldosterona. A incidência é de aproximadamente 1:15.000. Pode causar a morte nos pacientes com a forma perdedora de sal e também virilização nas mulheres. O defeito mais comum é a deficiência da 21-hidroxilase, que pode ser identificada na triagem neonatal pela dosagem da 17-OH-progesterona. Existem dificuldades com relação à definição dos pontos de corte do teste, e a coleta após 7 dias reduz os benefícios da triagem2,56. O tratamento é feito com glicocorticóides e também com mineralocorticóides nas formas perdedoras de sal. Existem controvérsias relacionadas ao custo-benefício do teste e à necessidade de mais estudos que justifiquem a triagem neonatal da doença57. A hiperplasia adrenal congênita também é objeto de projeto piloto no Estado de Minas Gerais (experiência pessoal).

Galactosemia é o aumento da concentração de galactose no sangue, causado por diversas condições autossômicas recessivas. A mais comum delas é a deficiência de 1-fosfato uridiltransferase, que nos EUA tem incidência de 1:40.000. As manifestações clínicas são vômitos, icterícia, hepatomegalia, catarata, atraso no desenvolvimento e septicemia, dentre outras. O tratamento é a exclusão de galactose da dieta e, apesar da melhora da sobrevida, a eficácia é limitada com relação às complicações em longo prazo2,58.

A deficiência da desidrogenase da MCAD é a principal doença dentre os defeitos da oxidação dos ácidos graxos. Suas manifestações mais comuns são episódios de hipoglicemia, que podem ser desencadeados por infecções ou jejum prolongado. Tratam-se de sintomas precoces que podem ocorrer até nos primeiros dias de vida. Um percentual significativo dos afetados morre no primeiro episódio45.

No Brasil, os laboratórios realizam a triagem para essa doença pela pesquisa por reação em cadeia da polimerase (PCR) da mutação A985G, responsável pela doença na grande maioria dos casos (98%) em países desenvolvidos, ou por MS/MS. Nos EUA, esta doença é triada por MS/MS45.

Doenças infecciosas e infecções congênitas, como toxoplasmose, citomegalovirose, sífilis, rubéola, síndrome da imunodeficiência adquirida e doença de Chagas, podem ser incluídas na triagem neonatal. Não existe uma visão sistemática sobre qual seria o valor dessas triagens no recém-nascido26,30. Outro aspecto importante é que, em grande parte das gestações, a investigação diagnóstica na mãe é realizada durante o pré-natal.

Em Minas Gerais, um projeto piloto para doença de Chagas concluiu que não se justificava a sua inclusão na triagem neonatal. Outro projeto piloto com a toxoplasmose congênita mostrou uma alta incidência, especialmente nas regiões de nível socioeconômico mais baixo e lesões oculares graves já ao diagnóstico (experiência pessoal).

A surdez congênita tem incidência estimada em 1:1.000 nascidos vivos e diversas etiologias. Pelo menos metade dos casos é atribuída a causas genéticas (sindrômicas e não-sindrômicas); a outra metade é associada a fatores ambientais (por exemplo: exposição a drogas ototóxicas, rubéola e citomegalovirose)10. O objetivo da triagem neonatal é identificar a perda auditiva precocemente para uma intervenção mais rápida. A deficiência auditiva, quando não identificada e sem tratamento adequado, afeta a fala e outras habilidades cognitivas.

A triagem é feita por meio de equipamentos computadorizados que medem respostas auditivas automatizadas do tronco cerebral ou emissões otoacústicas por produto de distorção. O segundo método é o mais utilizado no Brasil, por motivos econômicos e técnica de execução simples; entretanto, apresenta taxa de falso-positivos mais alta, principalmente se houver algum processo obstrutivo no canal auditivo10.

Espectrometria de massa em tandem no Brasil

Alguns laboratórios no Brasil já adquiriram espectrômetros de massa e estão oferecendo testes com esta tecnologia. É necessário que o pediatra, antes de solicitar o exame, se informe junto ao laboratório sobre quais doenças estão sendo oferecidas. Deve se informar também sobre como serão conduzidos o diagnóstico e o tratamento nos casos positivos, verificando qual centro especializado em doenças metabólicas acompanhará ou supervisionará o tratamento, pois a experiência brasileira na condução de diversas das doenças diagnosticadas por estes testes ainda é muito escassa.

Algumas questões éticas sobre a triagem neonatal

O debate sobre a triagem neonatal, especialmente sobre a triagem ampliada por MS/MS, envolve diversos aspectos éticos que necessitam ser do conhecimento do pediatra.

Tradicionalmente, os programas de triagem neonatal se restringiam a doenças para as quais a detecção precoce e o tratamento ofereciam benefício médico ao afetado. Um dos critérios da OMS é a tratabilidade. Uma das objeções à triagem por MS/MS é que ela é usada para triar doenças que podem ter significado clínico, mas não são tratáveis ou têm tratamento cujo benefício de saúde ainda não é bem estabelecido. No entanto, este princípio da tratabilidade já foi parcialmente transgredido antes, quando se introduziu a triagem para anemia falciforme e outras hemoglobinopatias e também para a fibrose cística. Além disso, os defensores dessa modalidade de triagem argumentam que o paciente se beneficiará das orientações antecipatórias para sintomas que ele poderá vir a desenvolver e as famílias se beneficiarão do aconselhamento genético, podendo tomar decisões reprodutivas de forma consciente. Secundariamente, alguns casos de morte anterior não explicada em irmãos podem, retrospectivamente, ter a sua causa esclarecida30,59.

Em seu início, a triagem neonatal, pelos benefícios propiciados aos recém-nascidos afetados, era compulsória. Atualmente, evoluiu-se para reconhecer o direito dos pais a recusá-la totalmente ou para alguma doença específica. Motivos culturais e religiosos justificariam essa decisão. Assim, é reconhecida a necessidade de os pais serem informados previamente à coleta e serem explicados sobre seus benefícios e riscos, sendo preconizada a utilização do termo de consentimento livre e esclarecido2,60. No entanto, essa não é ainda uma prática universal.

O respeito ao sigilo de todos os resultados da triagem neonatal, do diagnóstico e em todas as fases do seguimento é direito ético dos pacientes2,60.

Outra questão ética diz respeito ao destino dado aos espécimes coletados, como guardá-los e conservá-los, para preservar o sigilo dos pacientes e para se tomar precauções quanto ao seu uso posterior. Com a capacidade de extrair DNA do papel-filtro, torna-se um banco de DNA precioso, e sua utilização deve seguir rigorosos preceitos éticos. Deve ser lembrado que, na Islândia, uma empresa comercial adquiriu legalmente acesso a extensivos registros de saúde do país ligados aos bancos de material biológico61.

Questiona-se o diagnóstico de doenças com incidência e história natural desconhecidas, incertezas sobre a confiabilidade dos testes diagnósticos e efetividade do tratamento62. A maioria das doenças triadas por MS/MS tem incidência muito menor que 1:50.00063. O exame negativo não afasta algumas doenças, porque existem formas variantes da mesma que só se manifestarão mais tarde, levando a falso-negativos2.

Argumenta-se, em favor da triagem ampliada, o baixo custo da adição de um número significativo de doenças2,4-6,8,9,63. No entanto, outros argumentam que continuar a expandir o painel de doenças triadas simplesmente porque é fácil e barato não se constitui em uma abordagem prudente de políticas públicas32.

A identificação de portadores (no conceito genético desta palavra, ou seja, pessoas sadias que são heterozigotas para uma mutação de um gene de doença autossômica recessiva) é um problema da triagem neonatal, desde a introdução das triagens para anemia falciforme e fibrose cística. Isso pode ajudar no planejamento familiar, mas pode criar discriminação e constrangimentos. Como para cada afetado o número de portadores é bem maior, a utilização de tecnologias que ampliem o número de portadores de doenças pouco conhecidas exigirá cada vez mais recursos para o aconselhamento genético. Não existem pesquisas clínicas sobre o impacto da identificação de portadores na triagem neonatal2,7,12.

Outra questão delicada, acentuada com a triagem ampliada por MS/MS nos EUA, foi a perda do poder do Estado sobre as políticas de saúde pública, determinando gastos de forma desorganizada e desviando recursos de outras áreas. A privatização reduziu a jurisdição do Estado sobre a política pública de saúde. O uso voluntário pelos pais da triagem privada criou uma segunda triagem, não universal, determinada pelo conhecimento seletivo dos pais e pela capacidade de pagar64.

Companhias privadas de triagem estão progressivamente envolvidas na triagem neonatal em praticamente todos os estados estadunidenses e competem com o sistema público para oferecer um serviço pago para diagnóstico de MCAD e outras 50 doenças metabólicas.

Esta questão toca em outro aspecto ético fundamental, a eqüidade, ou seja, direito igual para todos. De acordo com este princípio, a triagem neonatal deve ser universal, não sendo aceitável a oferta diferenciada, dentro de um mesmo país, de painéis de triagem diferenciados2,26,59,60.

São considerados aspectos negativos da triagem ampliada o nível de estresse desencadeado nas famílias das crianças com resultados falso-positivos34 e aumento dos custos de longo prazo, sem que se saiba, até o momento, se compensam os benefícios.

Estas são apenas algumas das questões éticas, relativas à triagem neonatal, que são abordadas atualmente. É importante para os pediatras conhecê-las e discuti-las, para que se preparem para responder a desafios que certamente surgirão com os avanços da genética. É difícil prever todas as futuras possibilidades da tecnologia do DNA, sendo que, já de imediato, as técnicas de microarrays trarão questionamentos bem mais complexos. Problemas éticos maiores devem surgir com o aumento da capacidade de detectar doenças de início na idade adulta, ou de susceptibilidade a doenças por meio dos exames realizados no recém-nascido . Em que circunstâncias isso será ético?

É necessário iniciar o debate destes temas63.

Conclusões

A triagem neonatal é o maior programa de saúde pública ligado à genética em todo o mundo. Trata-se de um sistema de cinco etapas, geralmente conduzido pelo sistema público de saúde. Embora o pediatra ocupe um lugar proeminente, o seu conhecimento das doenças triadas, do tratamento e do prognóstico é pequeno.

O Brasil conta com um programa de triagem neonatal que segue as diretrizes internacionais adequadamente. O painel de doenças triadas é correspondente ao de alguns países desenvolvidos. À medida que se consolide, novas doenças devem ser introduzidas.

A triagem ampliada pela MS/MS parece ser irreversível, pois representa um avanço técnico considerável. No entanto, para se consolidar, precisa responder a algumas questões médicas e éticas.

A triagem neonatal apresenta problemas éticos que necessitam ser discutidos, pois eles apenas começam a delinear desafios éticos maiores que a triagem baseada em biologia molecular certamente trará.